O RPG já foi Considerado Perigoso

Campanha contra o RPG nos anos 80 nos EUA, conhecida como Satanic Panic, alegando que o jogo incentivava o ocultismo.

O RPG e a Satanic Panic: A História de uma Perseguição Moral nos Anos 80

Nos anos 80, os jogos de RPG, especialmente o Dungeons & Dragons (D&D), passaram por uma intensa perseguição moral nos Estados Unidos. A ideia de que os jogos de RPG eram perigosos e poderiam incitar comportamentos malignos, incluindo o envolvimento com o ocultismo, gerou um pânico moral que ficou conhecido como "Satanic Panic". Durante este período, muitos viram o RPG como uma ameaça à moralidade e à segurança das crianças e jovens, com acusações de que o jogo promovia práticas de magia negra, culto satânico e até mesmo suicídios e assassinatos. Embora não tenha havido provas substanciais que confirmassem essas alegações, o impacto desse pânico moral foi duradouro, e a forma como os RPGs eram vistos pelos meios de comunicação e pela sociedade mudou drasticamente. Este artigo examina as raízes, os eventos e as consequências desse período turbulento na história dos RPGs.



1. A Ascensão do Dungeons & Dragons e o Crescimento do RPG

Antes de mergulharmos nas controvérsias dos anos 80, é importante entender o contexto da popularização do RPG. Dungeons & Dragons, criado por Gary Gygax e Dave Arneson em 1974, foi o primeiro jogo de RPG de mesa de grande sucesso, e seu formato inovador de jogo de interpretação de papéis logo cativou milhares de jogadores ao redor do mundo. Em D&D, os jogadores assumem o papel de personagens fictícios em aventuras de fantasia medieval, com regras que envolvem dados para determinar o sucesso ou falha em diversas situações.

O jogo foi rapidamente adotado por jovens, especialmente adolescentes, que se reuniam para jogar em grupos. O apelo do RPG estava em sua liberdade criativa, permitindo aos jogadores explorarem mundos imaginários e vivenciarem aventuras como heróis, vilões, magos, guerreiros e outras figuras fantásticas. O crescimento do RPG nas décadas seguintes, especialmente nos anos 80, era um reflexo de uma era de grandes mudanças culturais, nas quais novas formas de entretenimento, como filmes de ficção científica e fantasia, começaram a dominar o imaginário popular.

No entanto, o sucesso de Dungeons & Dragons e de outros jogos de RPG logo atraiu a atenção de críticos, que começaram a questionar os potenciais efeitos do jogo sobre seus jogadores.



2. O Surgimento do "Satanic Panic"

O Satanic Panic teve seu início nos Estados Unidos nos anos 80, um período caracterizado por um clima de incerteza e medo social. A Guerra Fria, os escândalos políticos, e o aumento da violência juvenil contribuíram para um ambiente de tensão. Ao mesmo tempo, a cultura popular estava cada vez mais envolvida com o ocultismo e o misticismo, com filmes e livros sobre vampiros, bruxas, e outros elementos sobrenaturais ganhando destaque. As histórias de ocultismo, bruxaria e satanismo começaram a ganhar uma notoriedade preocupante, especialmente com o surgimento de figuras como Anton LaVey, fundador da Igreja de Satanás, e movimentos de autodenominados "satanistas".

Em meio a esse cenário, algumas organizações religiosas e grupos de pais começaram a ver o RPG, especialmente Dungeons & Dragons, como uma ameaça à moralidade e segurança de seus filhos. A crença popular era de que o jogo promovia o ocultismo, incentivava rituais satânicos e conduzia os jovens a comportamentos antiéticos e até criminosos. Esse medo foi alimentado por campanhas de desinformação, livros e artigos de notícias que exploravam o suposto vínculo entre o RPG e práticas satânicas.



3. As Alegações Contra o RPG

As acusações contra os RPGs eram variadas, mas a maioria girava em torno de três grandes temas: a promoção do ocultismo, a influência psicológica sobre os jogadores e a associação com comportamentos violentos.

O Ocultismo e o Satanismo
A principal acusação contra Dungeons & Dragons e outros RPGs era que eles promoviam o ocultismo e o satanismo. Os críticos apontavam para o uso de magias e feitiçarias no jogo, sugerindo que os jogadores estariam sendo "treinados" em práticas ocultas, mesmo que isso fosse uma parte fictícia do jogo. A presença de divindades mitológicas e demônios também foi vista como um convite ao mal. Os livros de regras de D&D continham menções a deuses e entidades sobrenaturais, o que gerou especulações sobre a natureza do jogo.

A Influência Psicológica
Além do ocultismo, muitos pais e psicólogos acreditavam que o RPG tinha um impacto psicológico negativo sobre os jogadores. As acusações incluíam a ideia de que os jovens poderiam se confundir com seus personagens e não conseguir distinguir entre realidade e fantasia. Em alguns casos, temia-se que os jogadores de RPG, particularmente os mais jovens, se sentissem compelidos a realizar rituais ou até mesmo se envolver em atividades criminosas ou suicidas, com base nas ações de seus personagens.

A Violência e o Crime
Uma das alegações mais impactantes foi a ligação entre RPGs e a violência. Alguns críticos afirmavam que o jogo incentivava o comportamento agressivo e até mesmo o suicídio. O caso mais famoso foi o de James Dallas Egbert III, um estudante universitário que desapareceu em 1979 e foi erroneamente associado ao jogo Dungeons & Dragons. Embora o caso não tivesse nenhuma relação real com o RPG, a mídia sensacionalizou a história, ligando o desaparecimento ao jogo e criando uma narrativa de que o RPG era perigoso para os jovens. A combinação da fantasia com o comportamento extremo alimentou ainda mais o pânico moral.

4. Reação dos Criadores e Defensores dos RPGs

Diante da crescente controvérsia, os criadores de Dungeons & Dragons e outros defensores do RPG tentaram desacreditar as alegações, defendendo o jogo como uma atividade criativa e intelectual. Gary Gygax, co-criador de Dungeons & Dragons, era frequentemente chamado para testemunhar contra essas acusações, afirmando que o RPG incentivava a resolução de problemas, a imaginação e a criatividade, e que não tinha absolutamente nenhuma relação com práticas satânicas.

Muitas organizações de RPG também começaram a se manifestar publicamente, esclarecendo que o jogo era apenas uma forma de entretenimento, sem qualquer intenção de promover comportamentos negativos. Os defensores do RPG, no entanto, enfrentaram uma luta difícil, já que a campanha moral contra o jogo estava amplificada por um clima de medo generalizado.



5. O Impacto da Satanic Panic

O pânico moral dos anos 80 teve um impacto profundo e duradouro no mundo dos RPGs. O jogo Dungeons & Dragons, que era um sucesso em rápida ascensão, foi temporariamente afetado por essas acusações. Vendas diminuíram, especialmente em algumas áreas mais conservadoras dos Estados Unidos, onde os pais proibiam os filhos de jogar. Muitos jogadores e mestres de jogo enfrentaram o estigma social de serem associados a práticas ocultistas, com algumas escolas e igrejas banindo explicitamente o jogo.

Além disso, a Satanic Panic teve um impacto significativo sobre a percepção da cultura nerd. Aqueles que eram fãs de RPG, ficção científica e outros hobbies "alternativos" passaram a ser vistos como pertencentes a uma subcultura marginalizada e até mesmo ameaçadora, o que criou um isolamento e um estigma para muitos.



6. O Legado do Satanic Panic

Embora o pânico moral tenha diminuído com o passar dos anos e o debate sobre o RPG tenha se estabilizado, os resquícios dessa época ainda são sentidos. As alegações de que os RPGs promovem o ocultismo nunca foram substanciadas por evidências, e muitas das associações com o satanismo desapareceram conforme as gerações seguintes passaram a ver o RPG como uma atividade saudável e benéfica. Hoje, o RPG é amplamente reconhecido por suas contribuições para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, sociais e criativas.

Entretanto, a Satanic Panic deixou uma marca na forma como o entretenimento é regulado em algumas culturas, e o medo de coisas novas e não compreendidas continua a ser uma reação comum frente a novos fenômenos culturais.



Conclusão

O período da Satanic Panic nos anos 80 é um dos episódios mais curiosos da história do RPG, e exemplifica o impacto que os medos morais e culturais podem ter sobre movimentos sociais e formas de entretenimento. O RPG, que começou como uma forma simples de contar histórias e explorar mundos imaginários, foi temporariamente estigmatizado como uma prática perigosa, associada ao ocultismo e à violência, sem qualquer base científica para essas alegações.

Hoje, o RPG é visto como uma forma legítima e popular de entretenimento, com milhões de jogadores ao redor do mundo. No entanto, a história da Satanic Panic serve como um lembrete de como o medo e a desinformação podem afetar negativamente uma subcultura, e como as narrativas sociais podem ser moldadas por campanhas de pânico moral sem fundamento.